O primeiro caso de impeachment no Brasil ocorreu em Sergipe :: Por José Lima Santana
José Lima Santana(*) jlsantana@bol.com.br
José Lima Santana (Foto: Arquivo pessoal)
O que interessa é o caso do prefeito Alípio de Zé de Torroinho, dado e passado em fevereiro de 1966. Alguém denunciou o prefeito na CGI – Comissão Geral de Investigações, braço estadual do famigerado SNI. A denúncia prendia-se a supostas compras de medicamentos e combustíveis demais da conta. Era, segundo, o vereador Roberto de Zeca Pinto, o Robertinho da Capivara, povoado chinfrim na beira do rio Sergipe, “um escândalo do cabrunco”. Robertinho xingava o prefeito dia e noite.
Uma equipe de militares chegou à cidade numa terça-feira logo cedo. Dirigiu-se à Prefeitura Municipal, onde encontrou tão somente a porteira Natalina, uma velha donzela, que quase deu um chilique quando viu os fardados de verde-oliva, os coturnos batendo firmes no assoalho de madeira fornida, como se quisessem acabar com o mundo. Os milicos mandaram chamar o prefeito a toque de caixa e repique de sino. E lá se foi Natalina, guiando um capitão, à casa do prefeito, que, logo, foi trazido à presença do major. O povaréu deu de entender que o prefeito estava sendo preso. Os correligionários entraram em pânico. Os adversários exultaram. E um deles, Luiz Latoeiro, soltou meia dúzia de foguetes de resposta do fabrico do sempre louvado mestre Euclides.
Em pouco tempo, todos os funcionários, que, a bem da verdade, não eram muitos, estavam no pé do serviço. A milicada era formada por um major, um capitão, um sargento e dois recrutas. Marizete de Júlio Pau D´água, chegada que era a um homem de farda, arrastou asas para o capitão, que ela achou um pão. Suspirou. Gemeu. O capitão, compenetrado em analisar pilhas de documentos, não se fez de rogado.
Retomo, com a permissão dos leitores, o momento exato em que o prefeito adentrou na Prefeitura. Foi recebido pelo major, que, polidamente, lhe deu notícia do porque daquela visita. “O senhor, disse ele ao prefeito, foi denunciado por corrupção. O senhor, segundo consta da denúncia, comprou medicamentos muito além das necessidades da população. E, ainda, vem adquirindo combustível que daria para abastecer uma frota numerosa, mas a Prefeitura só tem um veículo. Estamos aqui, em nome da Gloriosa, para apurar tudo. A Revolução de 64 não tolera corrupção. Os corruptos deverão ir para a cadeia. E depressa”.
O prefeito respondeu que nada tinha a esconder nem a temer. Mandou trazer toda a documentação da despesa, desde a sua posse. Zé Carlinhos de João de Juca, o tesoureiro, ele próprio, encarregou-se de trazer caixas e mais caixas de documentos. Notas de empenho, faturas, notas fiscais, recibos.
No bar de Pedro Lemos, adversário feroz do prefeito, ex-vereador que não logrou ser reeleito na última eleição municipal, o ex-prefeito Josias Preá pagou uma rodada de cinzano com guaiamu para os presentes, que não eram poucos. Ali, seria a trincheira da oposição até que o prefeito fosse metido na viatura dos militares e recambiado ao quartel, no Aracaju. Ora, para os adversários, a prisão de Alípio eram favas contadas. “Um ladrão safado!”, gritou Mário Costeleta, concunhado do prefeito, que não ganhou um cargo na Prefeitura e, a bem dizer, não passava de um descarado, manhoso, que já tinha tirado cana por falsificar uísque, em passado recente. Disso eu e o mundo inteiro sabemos. Algum leitor ou alguma leitora não sabe disso? Ah, não? Pois deve se informar melhor dos fatos, viu? É preciso estar-se antenado com a vida. De hoje e de ontem.
O major, num determinado momento, precisou ir ao banheiro, que ficava no fundo do velho sobrado. Demorou-se quase uma hora. Quando Maria Gorda foi fazer a limpeza do banheiro, encontrou o vaso todo cagado. O major estava com uma disenteria da moléstia. “Major mais seboso”, diria Maria Gorda, bem depois. Quanto ao capitão, ao perceber o enxerimento de Marizete de Júlio Pau D’água, que lhe oferecia descabidas gentilezas, deu-lhe um carão desgraçado: “A senhora está muito assanhada. Ponha-se no seu lugar e deixe-me trabalhar!”. Ela quase morreu. Trancou-se numa saleta perto do banheiro e chorou pelo resto da manhã.
Três dias ficaram os militares na cidade, analisando documentos. Hospedaram-se na pensão de Valdemar Freitas. Aliás, todos os hóspedes foram convidados a se retirar da pensão, para que os milicos não fossem incomodados. Alguém chiou? Não se ouviu um pio sequer. Tempos brabos aqueles da ditadura! Aliás, qualquer ditadura é uma peste. Porém, alguns imbecis não se dão conta disso.
O prefeito Alípio de Zé de Torroinho era o primeiro mandatário municipal, naquela cidade, a cuidar do povo, no tocante a questões de saúde. Não faltavam remédios, e o único carro da Prefeitura não parava, levando doentes para a capital. Daí, a alta soma gasta com medicamentos e com gasolina. Nada demais da conta, como, enfim, acabariam constatando os milicos, arvorados em peritos contábeis e em salvadores da pátria. Pobres diabos!
Bem. Ao cabo de três dias, foram-se os milicos. Nada constava que desabonasse a conduta administrativa do prefeito Alípio. Os adversários, que já programavam a festa para celebrar a prisão do prefeito, murcharam as orelhas. Os foguetes comprados aguardariam outra oportunidade para subir aos ares. O vereador denunciante, Robertinho da Capivara, não se daria por satisfeito. E, claro, continuaria a xingar o prefeito e a dar-lhe trabalho na Câmara Municipal. Os amigos de Alípio, contudo, fizeram festa. Merecida. O povo pobre continuaria a ser atendido.
Por fim, e livre de qualquer embaraço, Alípio de Zé de Torroinho postou um telegrama a um deputado federal, em Brasília, seu compadre e amigo: “Compadre vg militares não encontraram nada pt Não fui preso nem empixado”.
Diferente de outros processos de impeachment, o “empixe” do prefeito Alípio, como alardeava o vereador Robertinho da Capivara, deu em nada. Simples assim.
(*) Advogado, professor da UFS, membro da ASL e do IHGSE
Publicado no Jornal da Cidade, edição de 24 de abril de 2016. Publicação neste site autorizada pelo autor.
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