Obstetra de ocasião :: Por José Lima Santana
José Lima Santana*

O riacho da Melancia tinha botado uma cheia das seiscentas. Estava, como diria Zefa de Cantídio de Maria Fulô, “têbei”, quer dizer, cheio pela boca, ou, no caso do riacho, espraiando-se pelas baixadas, chegando ao pé da ladeira do Barro Alto, quase encostando no pé de Murici de Cachorro, cujos frutos, secos e bem pilados, dá uma farinha agridoce de lamber os beiços. Ou, botados na cachaça, torna-se bebida de grande apreciação.
Naquela manhã de quinta-feira, Timóteo de João de Caçula deveria ir de rota batida ao Marmeleiro de João de Guilhermino, afamado fazedor de cangalhas, para buscar encomendas que seu pai fizera e que estavam prontas: quatro pares de cangalhas para a tropa de burros. Porém, o riacho não dava passagem. Dava não. A cabeça d’água deu aparição na tarde do domingo, arrastando tudo que encontrava pela frente, em seu caminho alargado. Dali em diante só fez aumentar. Ninguém passava, nem na corda estendida. Riachinho físico nas estiagens, mas que se botava de rio nos bons invernos. Era a natureza dando as ordens, intrépida, que não se sujeitava às amarras humanas. Riacho berrando grosso com suas águas em estrepitoso rebuliço.
Tinha jeito de chegar à casa de João de Guilhermino, no Marmeleiro? Tinha, fazendo arrodeios, tomando o rumo do Itaperoá, descendo pelas pirambeiras da Serra do Gomo, nada mais, nada menos, do que meio dia de viagem em lombo de boa montaria.
João de Caçula, pai de Timóteo, precisava das cangalhas, para se botar estrada afora, em busca da cidade, de onde traria uma carga de cabaú, do Engenho Miraflor, para revender com bom lucro. Cabaú da última safra, do fim do verão. Era, pois, preciso dar conta de trazer as cangalhas.
Indo pelo Itaperoá, Timóteo passaria à porta da casa de sua prima Ana Alice, casada, sem o gosto da família, com um sujeito da família dos Bacamarte, apelido dado aos membros da família Souza Lins, por causa do uso, nos festejos juninos, da arma que lhe dera novo sobrenome. Chico Bacamarte era um cabra de bons bofes, bem diferente de seus parentes, estes metidos a arruaceiros.
As chuvas tinham dado uma trégua desde a noite anterior, chovendo amiudado. Timóteo tomou da carroça de burro e pôs-se em marcha para buscar as cangalhas encomendadas por seu pai, João de Caçula.
Carroça nova, burro bem alentado, de alinhado esquipe. As estradas vicinais estavam em petição de miséria. Água empoçada aqui, lamaçal ali. Água barrenta e lama espanadas por todo lado. Passaria pela Gameleira, pelo Grotão, pelas Bananeiras, pelo Passa Quatro, pela Coitezeira, enfim, desembocaria no Itaperoá. Assim foi feito.
No Itaperoá, bem em frente à bodega de Zé de Chichio, uma poça de quase meia-légua de extensão, com exagero e tudo, escondia um buraco que quase engoliu o burro. O muar cambecou, aprumou-se e saiu. O mesmo ocorreu com a roda esquerda da carroça. Logo ali estava a casa da prima Ana Alice. Casa de quatro águas, caiada de novo, jardim na frente. No telheiro, roupas dependuradas.
Timóteo de João de Caçula apeou. Desceu da carroça, atolando-se na lama avermelhada. A porta da casa estava semiaberta. “Ô de casa”! Ele gritou. Nada de resposta. “Ô de casa, prima”! Nada. Pareceu-lhe ouvir um gemido fraco. Escancarou a porta. O gemido tornou-se mais nítido. “Vou entrando”.
Ana Alice, prima de Timóteo, que ele a tinha como irmã, pois eram “irmãos de leite”, porque ela tinha sido amamentada pela mãe de Timóteo, Dona Lucinda, vez que Dona Efigênia, irmã da outra, tivera os peitos secados antes do tempo, ao passo que Dona Lucinda fora abençoada com uma lactação de fartura.
O primo Timóteo, que buscaria as cangalhas encomendadas pelo pai a João de Guilhermino, deparou-se coma a prima Ana Alice em estado de parto. Parto prematuro, esperado para dali a dois meses, porém, o bebê, apressado, quis conhecer as agruras do mundo antes do tempo. Bebê de sete meses. O estado da parturiente parecia ser grave. A jovem tinha caído e batido a cabeça no lastro da cama. Provavelmente, ficara inconsciente por algum tempo. O bebê fora expulso. O cordão umbilical ainda o ligava à mãe. Sem jeito, Timóteo tentou acudir. Fez o que pôde. Afinal, a casa da prima era isolada das demais casas do pequeno povoado.
Orientado pela prima, que se restabelecia, Timóteo cuidou de tudo, como ninguém o poderia fazer melhor. Em curso, o estágio de dequitação, que compreendia o período entre o nascimento do bebê e a expulsão da placenta. Foi um corre-corre. Água quente, que já tinha na chaleira, panos limpos, na gaveta do guarda-roupas, tesoura esquentada no fogão a lenha e muito mais.
Tudo resolvido a contento, próximo ao meio-dia, chegou Chico Bacamarte, o marido de Ana Alice. Ao tomar ciência da novidade, e antes de mais nada, bateu mãos do bacamarte encostado atrás da porta da despensa e o destambocou no mundo. Foi um tiro da gota serena. Afinal, era um menino. Como tal, merecia um bom tiro. Ele seria batizado com o nome de Timóteo, o obstetra de ocasião.